Temos de ser cuidadosos
com a considerada boa literatura
O Prémio Nobel de Literatura 2017, Kazuo Ishiguro, considera que, após a queda do "Muro de Berlim", em 1989, o mundo vive uma era de "complacência e oportunidades perdidas", dominada por "enormes desigualdades". O escritor britânico, de origem japonesa, denunciou a situação actual no discurso proferido em Estocolmo, na Academia Sueca, no passado dia 7.
Na ocasião, condenou também as "ideologias de extrema-direita", "nacionalismos tribais", alertou para o racismo, e referiu-se em concreto a 2016, como um ano marcado por acontecimentos políticos deprimentes, na Europa e nos Estados Unidos, contrariando os valores liberais que considerava garantidos.
O autor de "Os Inconsolados", de 63 anos, passou em revista os momentos mais significativos do seu percurso, que foram pontos de viragem na sua vida literária, e referiu-se com pessimismo ao presente, acrescentando ainda que só recentemente percebeu que "vivia há uns quantos anos numa bolha”, alheado da "frustração e preocupações" de muitas pessoas em seu redor.
A queda do "Muro de Berlim" permitiu, segundo Ishiguro, "o crescimento de enormes desigualdades - de riqueza e oportunidades - entre países e dentro destes".
O Nobel da Literatura referiu-se à "invasão desastrosa do Iraque em 2003" e aos "longos anos de políticas de austeridade impostas às pessoas comuns, após a escandalosa crise financeira de 2008".
Estas circunstâncias levaram a um presente em que "proliferam ideologias de extrema-direita e os nacionalismos tribais", e o regresso do racismo "nas suas formas tradicionais e nas suas versões modernas e maquilhadas", um fenómeno que desperta "sob as nossas ruas civilizadas como um monstro que desperta".
O autor de "Quando Éramos Órfãos” entende que, por outro lado, tudo que aconteceu em 2016 forçou-o a admitir que "o avanço imparável dos valores liberais que ele tinha dado por certo", desde sua infância, “poderá ter sido uma mera ilusão".
Para Ishiguro, atualmente, parece faltar "uma causa progressista que nos una". "Em vez disso" – acrescentou - "mesmo nas democracias ricas do Ocidente, estamos a dividir-nos em facções rivais, competindo como cães, por recursos e poder".
No termo da sua intervenção, na Academia Sueca, Ishiguro fez um apelo à comunidade literária: "É difícil mudar o mundo, mas pensemos no modo como podemos mudar o nosso 'pequeno mundo' da literatura, onde escrevemos, lemos, recomendamos, criticamos e premiamos os livros. Se pretendemos ter um papel relevante neste futuro incerto, se pretendemos obter o melhor dos escritores de hoje e de amanhã, temos de ampliar a nossa diversidade".
> Em primeiro lugar, devemos ampliar o nosso mundo literário, para incorporar muitas mais vozes provenientes de outras, que não as 'zonas de conforto' do primeiro mundo. Temos de procurar mais energia para descobrir o melhor de culturas literárias desconhecidas, tanto de escritores de países distantes, como nas nossas próprias comunidades".
> Em segundo lugar, temos de ser cuidadosos com o que consideramos boa literatura; não podemos ser conservadores, nem estreitar a nossa definição. A próxima geração trará todo o tipo de novos modos, importantes e maravilhosos, de contar histórias. Temos de manter a mente aberta, em especial no que diz respeito a género e forma, para poder apoiar e aplaudir os melhores".
A concluir observou que "num tempo de divisões perigosamente crescentes, devemos escutar. A boa escrita e a boa leitura que derrubam barreiras. Temos de encontrar uma nova ideia, uma grande visão humanista em torno do que congregamos", disse o autor que tem vários livros publicados em Portugal: “Os Despojos do Dia”, “As Colinas de Nagasaki”, “Um Artista do Mundo Transitório", “Quando Éramos Órfãos”, “Nocturnos”, “O gigante enterrado”.